TEOLOGIA E MAGISTÉRIO
O CELIBATO SACERDOTAL:
A ORIGEM DAS INCOMPREENSÕES
António maria sicari, Carmelita
Consultor da Congregação para o Clero
Na perspectiva do
próximo Ano Sacerdotal, convocado pelo Santo Padre com início em 19 de Junho e
que terá como tema «Fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote», temos o
gosto de oferecer aos leitores uma reflexão sobre o celibato sacerdotal,
publicada em L’Osservatore Romano, ed. port.,
13-XII-08.
Subtítulos da
Redacção da CL.
A Encíclica Sacerdotalis caelibatus
Não é difícil recolher um elenco
abundante de críticas à lei do «celibato sacerdotal». A Igreja não se esquece
delas nem as descuida. Paulo VI quis iniciar a Encíclica Sacerdotalis
caelibatus (1967) expondo «honestamente» o «coro de objecções» que se
elevava de todos os lados, nos anos que seguiram o pós-concílio. Não era
porventura verdade que o celibato dos ministros sagrados não era claro no Novo
Testamento? E as razões adoptadas a seu favor pelos antigos escritores
eclesiásticos não eram porventura inspiradas «num excessivo pessimismo pela
condição humana na carne», com argumentos «já não concordantes com todos os
ambientes socioculturais, nos quais a Igreja hoje é chamada a agir»? Que
responder a quem julgava errada a decisão de «fazer coincidir o carisma da
vocação sacerdotal com o carisma da perfeita castidade», afastando deste modo
do sacerdócio «aqueles que teriam a vocação ministerial, sem ter a da vida
celibatária»? O que responder a quem se dizia convencido de que «a preocupante
rarefacção do clero» deveria ser atribuída «ao peso da obrigação do celibato» e
acusava a Igreja de impedir com a sua lei «a plena realização do plano divino
de salvação, colocando em perigo, às vezes, a mesma possibilidade do primeiro
anúncio evangélico»? Não era talvez verdade que o sacerdote celibatário acabava
por se encontrar «numa situação física e psicológica não natural, nociva para o
equilíbrio e a maturidade da sua personalidade humana»? Não era porventura
verdade que o matrimónio «teria consentido aos ministros de Cristo um
testemunho mais completo da vida cristã inclusive no campo da família», não
dando oportunidade «a desordens e dolorosas faltas, que ferem e entristecem
toda a Igreja»? O que responder a quem via na lei eclesiástica do celibato «uma
injusta violência e um desprezo injustificável pelos valores humanos da
criação» e temia que os candidatos ao sacerdócio chegassem a aceitá-la
passivamente, com uma formação «em todos os casos, desproporcionada à entidade,
às dificuldades objectivas e à duração da obrigação» que tinham que assumir? A
todas estas objecções – já enumeradas nos primeiros números da Encíclica (5-13)
– Paulo VI deu uma resposta clara e atormentada.
A fórmula «lei do celibato»
Desde então passaram mais de
quarenta anos, mas elas, em vez de se desfazerem, talvez se tenham
consolidado e agudizado, inclusive na mente e no coração de alguns padres.
Parece-nos, todavia, que a urgência eclesial dos nossos tempos não seja a de
continuar a investigar sobre as objecções, mas procurar, no espírito e na
experiência dos próprios ministros sagrados, as raízes «doentes» das quais
sempre podem germinar.
A primeira raiz, que seria preciso
garantir na sua sanidade original, está ligada à linguagem que herdámos, e que
hoje deveria ser definitivamente limpa e esclarecida. A fórmula «lei do
celibato» é antiga e consolidada, mas conserva uma certa ambiguidade que não se
teve suficientemente em conta. Foi repetidamente esclarecida pelo magistério da
Igreja, unindo ao termo «lei» expressões que falam de «escolha livre e
perpétua», de «celibato voluntário e consagrado», de «dom ou carisma do
celibato», e outros mais. Mas isto não exclui que, na mente de alguns, se tenha
radicado a desagradável impressão de ter recebido de Deus a pura vocação para o
sacerdócio, mas de ter sido depois obrigado (ou até só «forçado») pela «lei»
eclesiástica, à aceitação do celibato. Que esta aceitação deva ser «livre e
motivada» não impede o facto de que a chamada ao celibato pareça chegar do
exterior, com a força de uma disciplina eclesiástica que poderia até não
existir, ou que poderia mudar com o tempo. Sobre esta exposição radicalmente
incorrecta – e veremos rapidamente porquê – todas as outras dificuldades,
subjectivas e objectivas, podem sempre enraizar-se e proliferar nos momentos de
provação ou de perturbação, e destruir progressivamente a serenidade e a
consciência de um padre. A sensação dolorosa – mesmo se teologicamente não
reflexa – de ter que suportar um carisma, em virtude de uma disciplina
eclesiástica, pode tornar-se dilacerante com o tempo e suscitar um processo de
auto-justificação, quando infelizmente se descobrisse transgressor de uma «lei»
que o espírito inicialmente partilhou, mas só enquanto lei. O erro é
substancial, e a fórmula tradicional «lei do celibato sacerdotal» corre o risco
de o perpetuar.
Na realidade, em sentido estrito,
uma «lei» do celibato sacerdotal, assim entendida, não existe. A lei da Igreja
do Ocidente não atribui o carisma do celibato àqueles que são chamados ao
sacerdócio, mas diz que são chamados ao sacerdócio aqueles que receberam de Deus o carisma da virgindade
consagrada. Existe sim uma «lei», mas ela consiste, precisamente, em reclamar
para a Igreja o direito de «chamar ao sacerdócio» apenas aqueles que ela quer e
considera idóneos. De facto, não existe, uma «vocação sacerdotal» totalmente
dependente da subjectividade do candidato que se apresenta. Existe uma vocação
sacerdotal só quando, quem se oferece para o ministério, é a pessoa dotada
daquelas características que a Igreja considera necessárias. E na Igreja
latina, uma das características de quem se oferece deve ser aquela de se sentir
chamado também para a sagrada virgindade.
A questão pode ser esclarecida com
uma afirmação que pode parecer paradoxal mas é, pelo contrário, simplesmente
verdadeira: em todos os nossos seminários, a situação dos candidatos actuais
não deveria mudar absolutamente, por pura hipótese, se chegasse um dia o
anúncio de que foi modificada a disciplina eclesiástica e que podem ser
admitidas ao sacerdócio também as pessoas casadas. E isto porque se supõe que
os actuais seminaristas se tenham «apresentado», e se estejam a preparar para o
sacerdócio, conscientes e desejosos de ter também o carisma da virgindade
consagrada. Mas é esta a realidade? O magistério da Igreja tentou definir cada
vez mais atentamente esta verdade. Já a Sacerdotalis caelibatus ensinava:
«O sacerdócio é um ministério instituído por Cristo ao serviço do seu Corpo
Místico que é a Igreja, a cuja Autoridade pertence então o direito de admitir
aqueles que ela julga aptos, isto é, aqueles aos quais Deus concedeu,
juntamente com outros sinais da vocação eclesiástica, também o carisma do
celibato sagrado» (n. 62; cf. n. 15). A Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores
dabo vobis (1992) confirma: «O Sínodo, convencido de que a castidade
perfeita no celibato sacerdotal é um carisma, recorda aos presbíteros que ela
constitui um dom inestimável de Deus à Igreja e representa um valor profético
para o mundo actual. Este Sínodo uma vez mais e calorosamente afirma quanto a
Igreja latina e alguns ritos orientais exigem, que o sacerdócio só seja
conferido àqueles homens que receberam de Deus o dom da vocação para a
castidade celibatária» (n. 29). Portanto um candidato ao sacerdócio que
reconhecesse «não ter recebido do Espírito o carisma da virgindade» deveria
simplesmente concluir que «não tem a vocação para o sacerdócio».
Celibato e sacerdócio
Outra questão grave é perguntar-se
se a formação dos candidatos ao sacerdócio, oferecida hoje nos seminários,
respeita verdadeiramente esta lógica profunda. O carisma do «celibato sagrado»
tem um conteúdo espiritual próprio, caracterizado pelo «sacerdócio» com o qual
deve «convir». Trata-se de uma virgindade propriamente sacerdotal: devendo agir
«na pessoa de Cristo» (no anúncio da Palavra e na oferta do Sacrifício), o
ministro compromete-se «virginalmente», optando por uma relação pessoal mais
íntima e complexa com o mistério de Cristo e da Igreja em benefício da
humanidade inteira» (Sacerdotalis caelibatus, n. 54).
Mas este realce, assim específico,
não deveria esquecer os três conselhos evangélicos (de
«virgindade-pobreza-obediência») que constituem teologicamente um unicum. Os
três conselhos não são separáveis: na sua unidade eles evocam a fé na
Santíssima Trindade (escolhe-se ser pobre perante o Pai rico de todos os
dons; obedientes como o Filho; virgens pelo amor unificador e
fecundo do Espírito Santo), eles unem intimamente o cristão ao mistério do
Filho encarnado que viveu pobre, casto e obediente; exprimem com radicalidade o
dinamismo das três virtudes teologais; conduzem ao redescobrir da estrutura
originária do ser humano e antecipam o mundo novo. Não se pode «professar» a
virgindade, sem professar também a pobreza e a obediência. Isto não significa
absolutamente que os presbíteros tenham que se tornar monges ou frades, nem que
devam explicitar a sua opção com votos particulares. Mas o presbítero não
poderá verdadeiramente viver virginalmente, se não escolhe viver também, de
maneira muito concreta, o conselho da pobreza e o da obediência: de modo que o
Deus sumamente amado (virgindade) se torne também a única riqueza (pobreza),
mas na contínua busca da Sua vontade (obediência). E assim como a virgindade
tem várias dimensões (espirituais, morais e físicas), devem tê-las também a
pobreza e a obediência do presbítero.
A Presbyterorum ordinis falou
demoradamente deste tema (cf. n. 15-17), mas fez disso só uma questão de
espiritualidade pessoal do padre. Talvez tenha chegado o momento em que a
questão esteja ligada mais explícita e organicamente ao tema da missão, e que
se extraiam as consequências, ainda que estruturais,
que incidem sobre a formação e a maneira concreta de viver dos presbíteros.
Para a obediência evangélica não basta a promessa relativa ao bispo e o respeito
dos pronunciamentos excepcionais da autoridade eclesiástica. É preciso que toda
a vida se torne um tecido de obediência e que o padre, chamado a agir sobre os
fiéis in persona Christi, experimente ele mesmo em primeiro lugar a
influência da pessoa de Cristo presente num ministro de Deus, aceitando
habitualmente sobre si mesmo a mediação competente e formativa de outro
sacerdote, escolhido como guia. Desta obediência objectiva deveria, depois,
fazer parte também uma verificação habitual concreta da pobreza evangélica na
qual o presbítero deveria emergir alegre, concreta e socialmente. Na minha
opinião, impõe-se neste ponto uma última evidência: virgindade, pobreza e
obediência (sobretudo a virgindade) não são verdadeiramente vividas fora de uma
pertença comunitária realista. Não se trata de imaginar modos de vida
monásticos ou conventuais para o padre, mas é necessário que a sua pertença ao
presbitério, sob a paternidade do bispo, se exprima em modos de comunhão de
vida que, em grande parte, ainda terão de ser inventados e que deveriam ser
activos desde os anos de formação, envolvendo os próprios formadores.